terça-feira, 19 de maio de 2009

Economia Solidaria na Revista Cidade Nova

Capa do mês


Muita gente pequena, em muitos lugares pequenos, fazendo coisas pequenas, mudarão a face da terra".

(Provérbio africano)

Fonte: REVISTA CIDADE NOVA

Em 1999, o número de trabalhadores brasileiros envolvidos com empreendimentos solidários não chegava a 100 mil. No final de 2007, quase 1,7 milhão de pessoas atuavam nos 21.859 empreendimentos de todo o país cadastrados no Sistema Nacional de Informações da Economia Solidária (SIES). Desprezados pela maioria dos estudiosos de economia e ignorados pelo mercado, esses empreendimentos têm se mostrado uma alternativa¬ eficaz para a inserção sócio-econômica da população excluída do trabalho formal. Mais que isso, em todo o mundo a Economia Solidária aponta caminhos para a construção de novas estruturas econômicas e novas relações de trabalho.

No Brasil, os empreendimentos econômicos de caráter solidário começaram a florescer no início dos anos 80, muitos deles incentivados pelas pastorais sociais da Igreja Católica (veja quadro). No início da década atual, algumas iniciativas, antes isoladas e fragmentadas, passaram a se organizar em redes ou pequenas cadeias produtivas, impulsionando novos empreendimentos. Durante o primeiro Fórum Social Mundial, em 2001, nasceu o Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), que passou a afirmar, junto à sociedade e aos vários níveis de governo, a importância desse tipo de organização sócio-econômica.

O avanço dessas articulações culminou com a criação, em 2003, da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes). Comandada pelo economista Paul Singer, a Senaes passou a ter um papel fundamental na formulação de políticas públicas e no fomento aos empreendimentos solidários.

Mais recentemente, em 2006, foi constituído o Conselho Nacional de Economia Solidária (CNES). Naquele mesmo ano aconteceu a Primeira Conferência Nacional da Economia Solidária, reunindo representantes de todos os Estados. "A organização e a conquista de um espaço na agenda dos governos foram fundamentais para o reconhecimento, por parte da sociedade, da importância dessa forma de organização do trabalho", afirma o sociólogo André Ricardo Souza, pesquisador da PUC-SP e presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores de Economia Solidária (Abpes).


RESISTÊNCIA À EXCLUSÃO

Um dos fatores que está na raiz da criação e do desenvolvimento dos empreendimentos solidários é, sem dúvida, a resistência ao processo de desemprego e exclusão social na cidade e no campo. Se num primeiro momento, a necessidade de sobrevivência incentiva muita gente a trabalhar em atividades informais, a cooperação e a associação logo aparecem como uma opção que permite criar alternativas mais sólidas de trabalho e garantir melhoria de renda aos participantes. "Apesar das dificuldades, o movimento da Economia Solidária vem crescendo e se consolidando, com resultados significativos nas áreas de geração de trabalho e de renda, além do fortalecimento da cidadania e do desenvolvimento local", diz a professora e pesquisadora da Universidade de Maringá (PR), Maria Nezilda Culti.

Embora a Economia Solidária envolva também gestores públicos comprometidos com essa causa e entidades de apoio e fomento, os principais protagonistas são os empreendimentos solidários. E são os mais variados possíveis: cooperativas populares de consumo, de comercialização e de crédito solidário na cidade e no campo; empresas de autogestão; associações de agricultores familiares; fundos solidários de crédito; clubes de trocas solidárias; cadeias de comercialização e lojas de comércio justo; entre outras.

Os empreendimentos solidários se baseiam na organização coletiva do trabalho, na cooperação e na solidariedade. E, claro, têm caráter de atividade econômica suprafamiliar. "Outras características desse modelo de empresa são a propriedade dos meios de produção - os trabalhadores são os sócios do negócio - e autogestão", lembra Ricardo Souza. Isso significa que o processo decisório também é democrático - o que, às vezes, gera dificuldades, justamente pela menor agilidade em relação a outras empresas onde as decisões são tomadas por poucas pessoas.


SOLUÇÕES LOCAIS

Berço do cooperativismo brasileiro, e por essa razão com uma forte cultura de associativismo, a região Sul é onde há um maior nível de organização da Economia Solidária. Porém, o maior número de empreendimentos está no Nordeste, especialmente atividades ligadas à agropecuária e que, em muitos casos, representam a única alternativa de renda para comunidades inteiras. Um exemplo desse tipo de iniciativa vem da Associação em Áreas de Assentamento¬ no Estado (Assema), liderada por trabalhadores rurais e quebradeiras de coco babaçu que promove o desenvolvimento sustentável na região central do Maranhão.

Desde 2002, o Banco Solidário da Mulher financia, exclusivamente, as mulheres quebradeiras de coco babaçu, produto tradicional da região de transição para a Floresta Amazônica, do Piauí ao Pará. A iniciativa promove a produção familiar, com o uso sustentável dos babaçuais e desde o ano passado conta com o apoio do governo federal e do Banco¬ do Nordeste do Brasil (BNB). Os 12 projetos aprovados a partir do convênio entre a Senaes e o BNB envolvem vários empreendimentos de agricultura orgânica, piscicultura, bovinocultura, avicultura, suinocultura e caprinocultura nos seis municípios onde a Assema atua.

Como no caso das quebradeiras de coco, os quase 22 mil empreendimentos solidários brasileiros buscam criar focos locais de desenvolvimento sustentável ou, então, desenvolver redes de comercialização que possam sustentar as atividades de produção. Alguns exemplos bastante conhecidos são o Projeto Esperança, no Rio Grande do Sul (veja quadro), e o projeto Harmonia Catende, em Pernambuco. Catende é um caso de empreendimento de grande porte sob a gerência dos próprios trabalhadores desde o início dos anos 1990, depois que os mais de 2,5 mil empregados conseguiram impedir, na Justiça, o fechamento da usina de açúcar, como queriam os antigos proprietários.

Entre as cadeias produtivas que trabalham dentro dos princípios da Economia Solidária estão a Rede Bode (BA), Rede Marcas (MG), Justa Trama (rede de produção de algodão ecológico que reúne empreendimentos de cinco Estados) e a Rede Abelha (que reúne empreendimentos de apicultura em vários municípios do Nordeste).
Se o balanço geral mostra um enorme avanço quantitativo é também verdade que a Economia Solidária ainda enfrenta inúmeros desafios. No conjunto, predominam os pequenos ou microempreendimentos, muitos deles com precárias condições de geração de renda.

De acordo com o Atlas da Economia Solidária no Brasil, em 2007, 36% dos empreendimentos solidários ainda eram informais, enquanto apenas 9% das cooperativas estavam formalizadas. Quanto à geração de renda, apenas 31% propiciavam uma renda inferior a um salário mínimo - outros 16% não estavam conseguindo sequer remunerar seus membros. Na outra ponta, só 5,9% dos empreendimentos conseguiam gerar renda acima de dois salários-mínimos por sócio.

Como muitos desses empreendimentos são informais ou têm baixo grau de formalização - além de não possuírem garantias patrimoniais -, eles não conseguem obter crédito para financiar a atividade. E se não podem fazer o negócio crescer, a renda gerada para os associados também não aumenta. Outro problema apontado por 61% dos empreendimentos é a dificuldade de comercialização dos produtos ou serviços.

"Falta ao Estado brasileiro um olhar mais cuidadoso e o estabelecimento de políticas públicas mais efetivas para esses empreendimentos solidários, que têm grande potencial para gerar emprego e renda", analisa André Ricardo de Souza. Segundo ele, com esses empreendimentos acontece o mesmo que no caso do emprego individual. Ou seja, as políticas públicas dão garantias para o trabalhador formal, enquanto o informal fica sem nenhum apoio quando perde o trabalho em um momento de crise. Da mesma forma, as medidas governamentais não chegam até esses pequenos empreendimentos - e a situação torna-se ainda pior em períodos de crise econômica como a atual.

De acordo com a professora Maria Nezilda, a criação de um marco legal próprio, inclusive com melhores condições tributárias e fiscais, seria um passo fundamental para consolidar os empreendimentos de Economia Solidária. Ela cita como exemplo, a Lei do Super Simples, sancionada pelo presidente Lula no ano passado, que simplificou e unificou os impostos federais, estaduais e municipais cobrados das pequenas e microempresas - o que reduziu a tributação sobre elas. No entanto, até agora não se permitiu a inclusão das atividades de Economia Solidária nesse regime diferenciado de tributação.

Para a pesquisadora, a atual crise econômica - que evidenciou os limites intrínsecos de um modelo econômico baseado na concentração exacerbada da riqueza nas mãos de poucos - deveria servir para um despertar da sociedade sobre a importância dos empreendimentos solidários. "Afinal, os princípios de cooperação e distribuição equitativa da riqueza e da renda são mais condizentes com um modelo de sociedade menos individualista e mais justo", finaliza Maria Nezilda.


A ECONOMIA SOLIDÁRIA NO BRASIL

1,7 milhão de pessoas envolvidas;
21.859 empreendimentos cadastrados, 49% deles criados entre 2001 e 2007;48% atuam no meio rural, 35% nas áreas urbanas e os demais atuam nas duas áreas;
55% dos empreendimentos atuam no cultivo agrícola ou criação de animais;
14,5% são do setor de produtos têxteis, artigos para o vestuário e artefatos de couro;
52% dos empreendimentos são associações;
36% constituem grupos informais;

9,7% são cooperativas formais;
59,8% dos empreendimentos têm faturamento mensal inferior a R$ 5 mil;
4,8% faturam mais de R$ 100 mil por mês;
5,9% conseguem propiciar aos associados rendimentos acima de 2 salários-mínimos por mês;
31% dos empreendimentos geram renda mensal inferior a um salário-mínimo para cada associado;
61% dos empreendimentos encontram dificuldade para comercializar o que produzem;

Fonte: Atlas da Economia Solidária no Brasil. Senaes/MTE. Dados relativos ao ano de 2007.


POBREZA, RIQUEZA E ESPERANÇA


A ideia de criar atividades econômicas comunitárias ou autogestionadas remonta ao início do século XX, com os embates dos trabalhadores por melhores condições de trabalho. As sementes do que hoje se chama de Economia Popular Solidária começaram a ser plantadas quando a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou, em 1981, os Fundos Solidários, que tinham por objetivo incentivar a criação de Projetos Alternativos Comunitários (PACs) voltados para o desenvolvimento local.

Uma personalidade que teve papel fundamental no desenvolvimento dos PACs e, posteriormente, de todo o movimento da Economia Solidária no Brasil foi o então presidente da CNBB, o bispo dom Ivo Lorscheiter, falecido há dois anos. "Dom Ivo foi sempre um grande incentivador de todas as ações voltadas para a construção de alternativas econômicas baseadas na cooperação e na solidariedade", lembra a coordenadora do Projeto Esperança, Lourdes Dill.

O próprio Projeto Esperança, uma das iniciativas solidárias mais importantes do Rio Grande do Sul, tem uma história curiosa. Naqueles primeiros anos da década de 80, em Santa Maria (onde dom Ivo era bispo), um grupo, formado por estudantes, professores universitários, sacerdotes, religiosos e especialistas em agricultura, começou a estudar o livro "A Pobreza, Riqueza dos Povos", do africano Albert Tévoèdjeré, publicado pela Editora Cidade Nova.

Os seminários e jornadas de debates sobre o livro concluíram que a transformação da realidade social viria pela força da solidariedade e pela valorização das pequenas coisas. Baseado nessas reflexões, dom Ivo lançou, em 1984, um desafio à Cáritas do Rio Grande do Sul: buscar, por meio de projetos alternativos, soluções para os problemas sociais da época, como o desemprego, o êxodo rural, a fome, a miséria e a exclusão social.

Em pouco tempo, começaram a nascer na região, várias iniciativas de primeiras associações e grupos comunitários que depois desembocaram no Projeto Esperança e na Cooperativa Mista dos Pequenos Produtores Rurais e Urbanos vinculados ao projeto. Hoje, são mais de 250 empreendimentos solidários distribuídos em 30 municípios da região central do Rio Grande do Sul. As iniciativas beneficiam diretamente cerca de 5.000 famílias - os beneficiados indiretamente, incluindo os consumidores, chegam a 22.000.
A Economia Solidária é, hoje, um dos quatro pontos prioritários do Fórum das Pastorais Sociais da Igreja Católica. E o tema da Campanha Ecumênica da Fraternidade de 2010 será Economia e Fraternidade.

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